"Lembro que sempre sonhei viver de amor e palavra." Herbert Vianna

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terça-feira, 18 de outubro de 2011

Nós que aqui estamos, por vós esperamos


Já há algum tempo que me provocava o desejo de escrever sobre este filme que tanto me impressionou. As primeiras cenas de "Nós que aqui estamos por vós esperamos" (1999) me chegaram aos sentidos através de um programa de televisão. Fragmentos em preto-e-branco, imagens do século XX... e o título! Só o título já seria suficiente para me instigar a curiosidade: nós quem? vós quem? por que esperam? Mas o fato é que apenas agora o desejo materializa-se em palavras, e apenas agora o desejo tornou-se insuportável, porque escrever talvez seja isto: uma catarse.

Enfim... Nós que aqui estamos por vós esperamos é a frase, sentença que assusta, que o diretor Marcelo Masagão encontrou cunhada no portal de entrada de um velho cemitério. E aconteceu aquela coisa tão comum nas artes: o acaso buscou perpetuar-se. É esta sentença que nos alerta, ou melhor, que nos devolve o senso de humildade, que marca a proposta do filme, que é a de discutir a banalização da morte e, por extensão, a banalização da vida. E Masagão consegue então construir um poema visual - quase não há palavras - pois o filme que nos apresenta constrói-se de breves momentos do século XX perpetuados pelo registro perspicaz, ou apenas incidental, de velhas câmeras e anônimos cineastas do acaso. Uma profusão de imagens que se sucedem, envolvem-nos em uma trama fortuitamente tecida e que desafiam àqueles que crêem no plano da vida, na linearidade dos acontecimentos. Imagens que nos transportam da dor, do sentimento de vergonha em relação ao ser humano, ao encantamento, ao deslumbramento, pois é humano, e sempre "demasiadamente humano", o ódio e o amor. Portanto, não é um filme pessimista, é um poema, e como tal, desequilibra. E o primeiro desequilíbrio que me esbofeteou o rosto foi o de perceber que aqueles que via na tela, pessoas comuns que possuíam uma data de nascimento, um nome e, quiçá, sonhos, eram pessoas comuns! Eram, sim, e que contribuíram, consciente ou inconscientemente, na construção deste mundo que com tantos prazeres e desprazeres nos brinda hoje. Pessoas esfalfadas no cansaço provocado pelo sempre tão importante trabalho; pessoas felizes, que sorriam, gargalhavam até, ou pessoas desesperadas, naufragadas em prantos.

O século XX foi estas pessoas e aquilo que sonharam ou deixaram de sonhar! Não pude permanecer indiferente ao filme, e também quis elencar as imagens que me marcaram neste século cujo fim já festejamos. Apesar de muito jovem e de ter vivido apenas o último quartel do século passado, algumas cenas permanecem indelevelmente marcadas em minha memória, tatuadas em minhas retinas, como a do jovem chinês que enfrentou uma coluna de tanques na Praça da Paz Celestial ou a da enorme multidão que se lançava sobre um punhado de arroz lançado no solo árido de sonhos da Etiópia. Lembro-me, e ainda com assombro, da inenarrável massa de homens de torso nu, qual formigas, a subir e descer a enorme cratera de Serra Pelada em busca de ouro; bem como não posso esquecer do cheiro e da consistência da tinta com a qual marquei meu rosto em protesto ao governo Collor. Jovem como sou, os últimos suspiros da ditadura militar brasileira só me chegaram como uma amarga brisa, era criança, e como tal, só percebia meus brinquedos e um pouco do medo que se ia nos rostos de alguns, e por isso me soava como um mito saber dos tempos em que estudantes se lançavam às ruas em protesto, empunhando nas mãos uma bandeira e acalentando no peito um desejo. Quando pintei meu rosto e me juntei aos muitos que cantavam "Para não dizer que não falei das flores", a brisa transformou-se em furacão, e então pude entender aquilo que só me tocava de leve. Este entendimento provocou-me cicatrizes que dificilmente serão apagadas - e nem quero que se apaguem! Muitas imagens carrego, algumas de antes de ter nascido, como a do corpo franzino de Gandhi que arrastava atrás de si uma Índia inteira e que unia os opostos através da sua fome. Como esquecer Gandhi?! E como esquecer Chico Mendes, tão covardemente morto? "Nós que aqui estamos por vós esperamos", e um dia também esperaremos nós, e que sejamos lembrados por aquilo que fizemos! Ao "esperar" não quero que lembrem o século XXI pelas torres que tombaram, nem pelos corpos insepultos dos palestinos tão covardemente assassinados e dos judeus vitimados pelo ódio. Não quero que se nos lembrem pelo sangue que manchou a pequena ilha do Timor (e que ainda mancha), mas pelo aroma do sândalo que voltará a recender na terra "em que o Sol nasce primeiro". Ainda há tempo, o século apenas inicia, e sonhar que o silêncio dos funerais pode ser substituído pelo silêncio daquele que ouve e, ouvido, sabe compreender e, sabendo compreender, aprende a conviver, ainda é possível.

"Nós que aqui estamos por vós esperamos", também esperaremos... E que o próximo filme possa mostrar que a banalização da vida ensinou-nos a valorizá-la. Afinal, o século XXI seremos nós, nossos prantos e nossos sorrisos, nossos sonhos e aquilo que deixamos de sonhar.

Por: Viegas Fernandes da Costa é historiador e professor.
O presente texto foi publicado na coluna Crônica da Semana, Blumenau, 10 de dezembro de 2002.

2 comentários:

  1. Amigo, por favor, indicar a fonte do texto é sempre bacana. Este, de minha autoria, foi extraído de: http://viegasdacosta.blogspot.com Peço também que incluas o nome do autor abaixo do título, conforme no original. Este texto também está publicado no livro "Sob a luz do farol", de Viegas Fernandes das Costa (Editora Hemisfério Sul, 2005)
    Abraço!

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